sábado, 2 de abril de 2011

REPRESENTAÇÃO: O PODER DO OLHAR

 

Neste texto pretendemos refletir sobre representação e o poder do olhar a partir do filme “O Bravo”.  Aqui, representação é entendida como inscrição, marca, traço, significante, e não como processo mental, ou seja, é a face material, visível e palpável do conhecimento. Quando se fala em representação volta-se para a relação entre o “real” e a “realidade” e as formas pelas quais esse “real” e essa “realidade” se tornam presentes para nós – re-presentados.(SILVA, 2003, p. 32).
            O filme de Jonny Deep retrata a história de um homem que vivia em uma situação miserável com sua família, em um lixão, juntamente com outras pessoas que também estavam identificadas com essa situação degradante. Situação esta, que leva o personagem principal a se vender para um homem branco/capitalista, que sentia prazer em fazer os outros sofrerem até a morte, especialmente homens pertencentes a culturas subjugadas socialmente.
Neste contexto, podemos tentar entender a “política de identidade” (SILVA, op. cit). Embora haja uma revolta das identidades culturais e sociais subjugadas contra os regimes dominantes, são estes que possuem o direito de representar, que têm a voz e o poder de decisão – representação como “delegação” – enquanto os diferentes grupos culturais e sociais são simplesmente apresentados nas diferentes formas de inscrição cultural: nos discursos e nas imagens pelas quais a cultura representa o mundo social – representação como “descrição”. Essas duas dimensões de representação estão intrinsecamente ligadas, pois quem tem a delegação de falar e de agir em nome do outro dirige, de certa forma, o processo de apresentação e de descrição do outro, como destaca Silva (2003) “quem fala pelo outro controla as formas de falar do outro” (p. 34). Assim, os pressupostos capitalistas, tais como o desejo de consumo, a valorização da matéria, contrapõem-se a uma cultura mais humanizada, no caso do filme, às tradições indígenas, ao culto do espírito e dos antepassados.
Os “universais” da cultura são, pois, sistemas de significação cuja pretensão consiste em expressar o humano e o social em sua totalidade. No entanto, estes são sempre e inevitavelmente, segundo Silva (op. cit., p. 33), sistemas de representação, isto é, construções sociais e discursivas parciais e particulares dos grupos que estão em posição de dirigir o processo de representação. Nesse sentido, a “política de identidade” se situa na interseção entre representação – como forma de conhecimento – e poder. Nas palavras de Pollock, 1994, citado por Silva (op. cit.), “a representação deve ser entendida como uma relação social constituída e exercida por meio de apelos específicos à visão, de manipulações específicas de espaços e de corpos imaginários para o benefício do olhar” (p. 33).
 Nesse sentido, o filme apresenta um referencial que fala muito mais por meio de imagens, da trilha sonora, das ações dos personagens, do que por meios lingüísticos verbalizados. O que nos leva a constatar que, realmente, não há uma relação biunívoca entre significado (conceito, idéia) e significante (uma inscrição, uma marca material: som, letra, imagem, sinais manuais), como pressupunha Saussure, por meio da lingüística estruturalista, visto que o significado não tem possibilidades de existir separado do significante, como propõe Derrida (apud SILVA, op. cit., p. 41).
Por meio dessa mudança conceitual, Derrida desconstrói qualquer traço de separação entre “significado” e “significante”, introduzindo a incerteza e a indeterminação no processo de significação, uma vez que se supostamente o que é representado não está nunca plenamente presente no significante, a representação – como processo e como produto – não é nunca fixa, estável e determinada. Portanto, cada sujeito pode construir a sua interpretação/significação a partir de um mesmo significante. Uma mesma passagem do filme pode pressupor diferentes olhares e diferentes interpretações, pois, como destaca Fricke (mimeo), muitos e diversos são nossos possíveis olhares sobre os fatos, os fenômenos. Além disso, os olhares são variáveis, pois dependendo de quem faz a observação, assumem uma diversidade só perceptível ante a sua própria aferição no confronto com o episódio avaliado.
Nessa perspectiva pós-estruturalista, o filme pode ser considerado um texto escrevível, que permite a cada leitor/telespectador tornar-se um produtor, considerando o conceito apresentado por Barthes, 1992, citado por Silva, op. cit., p. 39:
O texto escrevível é um presente perpétuo (...); o texto escrevível é a “mão escrevendo”, antes que o jogo infinito do mundo (o mundo do jogo) seja cruzado, cortado, interrompido, plastificado por algum sistema singular (Ideologia, Gênero, Crítica) que venha impedir, na pluralidade dos acessos, a abertura das redes, o infinito das linguagens (...). Nesse texto ideal, as redes são múltiplas e se entrelaçam, sem que nenhuma possa dominar as outras; este texto é uma galáxia de significantes, não uma estrutura de significados; não tem início; é reversível; nele penetramos por diversas entradas, sem que nenhuma possa ser considerada principal(...).
Em contraste com o texto escrevível, de acordo com Barthes, o texto legível, não permite mais do que a leitura: uma leitura, ficando limitado ao domínio da representação entendida como mimese, reflexo, reprodução. Neste caso, o filme “O Bravo”, embora produza uma relação não-mediada com a realidade, funciona como um “efeito de realidade”, que faz com que a pessoa que o assista esqueça os códigos e os artifícios de representação pelos quais a “realidade” transmuta-se em “significado/significante”.
Ao assistir esse filme podemos simplesmente ficar na narrativa principal ou tentar entender outras categorias e/ou relações que se estabelecem a partir desta. Podemos olhar para a narrativa a partir de diferentes olhares e também identificar diferentes olhares. Cada um desses olhares, por conseguinte, possibilitará uma interpretação diferenciada, isto porque, embora o significante esteja posto, o significado é indeterminado.
É possível, pois, estabelecermos uma analogia entre a análise do filme “O Bravo” e a análise do estilo fotográfico da revista National Geographic, realizado por Catherine Lutz e Jane Collins, que descrevem a fotografia como o local de cruzamento de sete tipos de olhares: do fotógrafo; da revista; do/a leitor/a; do sujeito não-ocidental; do sujeito ocidental; o olhar refratado do outro (o outro se vendo como os outros o vêem) e o olhar acadêmico.
No filme, por sua vez, também podemos perceber diferentes olhares, tais como: o olhar do cineasta e/ou diretor, do telespectador/a; do branco/capitalista; do sujeito latino americano assujeitado à cultura capitalista e deste vendo como os outros o vêem, além do nosso olhar, enquanto pesquisadores.
Segundo Lutz & Collins (apud SILVA 2003, p. 59), as relações sociais coloniais são levadas a efeito por meio de um “regime de visibilidade” no qual o olhar é crucial tanto para identificar o outro quanto para mostrar como o discurso racista pode enquadrar o eu espelhado como o outro dentro de si mesmo. O filme e todas as intersecções dos olhares que ele carrega constituem, pois, um espaço no qual tem lugar essa identificação e, ao mesmo tempo, o conflito constituído pelo esforço de manutenção de uma visão estereotipada da diferença socialismo/capitalismo.
O papel crucial da fotografia no exercício do poder, como destacam Lutz & Collins, citados por Silva (2003, p. 59), reside em sua capacidade para permitir o estudo íntimo do Outro. A multiplicidade de olhares está na raiz da ambigüidade da foto, cada olhar sugerindo, potencialmente, uma forma diferente de ver a cena. Voltando-se ao filme também percebemos a possibilidade de estudar o íntimo do personagem principal e também dos demais personagens, contudo, a multiplicidade de olhares sugere diferentes interpretações. Por exemplo, no filme, há uma passagem em que o personagem principal procura se afastar do meio em que vive para analisá-lo/observá-lo. O telespectador pode fazer várias leituras dessa cena, do olhar do personagem principal, que predomina praticamente toda narrativa, mas a significação “real” da mesma não está fixa, determinada, podendo ser inferida a partir de diferentes olhares observadores.
Com isso, podemos perceber que este filme permite reconstruir estórias sobre o olhar. Olhares esses que são ambíguos, carregados de sentimento e de poder. Não se trata simplesmente de uma visão capturada do outro, mas antes de um local dinâmico no qual se interseccionam muitos olhares, como destaca Silva:
...inquiridor, o olhar esquadrinha o campo das coisas visíveis: o que ele retorna é a representação. Postular, dessa forma, a visão como elemento de mediação não significa, entretanto, retornar a algum tipo de realismo, renunciando, assim, à reivindicação do caráter construído e indeterminado da representação [...] Na verdade, a observação nunca se dá a olho nu: entre ela e as coisas se interpõe, já, a linguagem. Ao retornar, na representação, é de novo a linguagem que se atravessa no caminho. Postular a existência do visível, em oposição ao dizível, como fez Foucault, não significa, pois renunciar à representação, mas tão-somente reconhecer o papel ativo da visão na formação da representação. (SILVA, 2003, p. 60).

Neste caso, reconhecendo o papel ativo da visão na formação da representação, percebemos que o filme e os personagens partilham um atributo fundamental: são objetos para os quais nós, enquanto pesquisadores, olhamos. As linhas de olhar perceptíveis no filme sugerem as múltiplas forças em funcionamento na criação do significado pelo cineasta e a posição do telespectador tem o potencial de reforçar ou articular o poder do observador sobre o observado.
Muitas das operações próprias do poder se realizam e se efetivam no olhar, por meio do olhar. É pelo olhar que o capitalismo sobrevive, porque suas premissas estão na cabeça de todos. É pelo olhar que o homem transforma a mulher em objeto: imobilizada e disponível para seu desfrute e consumo. É pelo olhar que o branco/capitalista objetifica os latinos americanos transformando-os em simples objetos de observação, tortura e prazer. É pelo olhar que o pai demonstra o seu amor e respeito pela mulher e filhos. É pelo olhar que a igreja condena ou perdoa seus paroquianos. É pelo olhar que nós observamos e analisamos as diferentes “realidades/representações”, ora como pesquisadores, ora como seres humanos e ora como ambos, pois esses olhares se misturam e tem momentos que não se sabe se o que significamos foi pelo olhar do pesquisador ou do ser humano. E, além disso, como destaca Fricke (mimeo) “nossa visão é seletiva e incapaz de transmitir com exatidão uma realidade a ser avaliada”.
O olhar imperial que soberanamente tudo abarca, que tudo descortina na paisagem colonial, expressa, mais que tudo, o domínio do colonizador sobre os lugares e as pessoas (PRATT, 1992 in: SILVA, 2003, p. 61). Da mesma forma, o olhar relaxado, confortável, benevolente, superior (um olhar de pálpebras levantadas), de qualquer pessoa em posição de autoridade, como é o caso do branco que “emprega” o jovem para ser torturado e posto diante da morte, contrasta com o olhar humilhado, atemorizado, de reverência (um olhar de pálpebras abaixadas) da pessoa em posição inferiorizada, como é o caso de Raphael, que se submete a uma situação de degradação humana extrema, vender seu próprio corpo, a sua vida, para dar a sua família um pouco de dignidade.
Tem-se ainda o olhar total, panóptico, que tudo vê é a expressão suprema de um controle e de um poder que, na sua eficácia visual, pode se dar ao luxo de dispensar a força e a violência (FOUCAULT, 1977 apud SILVA, 2003, p. 61). Esse olhar panótico é representado no filme pela vigilância dos capangas do homem branco, que passa a observar todas as ações de Raphael e de sua família.
Desta forma, pode-se dizer que é na representação que o poder do olhar e o olhar do poder, se materializam; é na representação que o visível se torna dizível. É na representação que a visibilidade entra no domínio da significação. Além disso, como destaca Silva,
... é também na representação que se encontram, se cruzam, os diferentes olhares que, no domínio da visibilidade, antecedem a representação: o olhar de quem representa, de quem tem o poder de representar; o olhar de quem é representado, cuja falta de poder impede que se represente a si mesmo; o olhar de quem olha a representação; os olhares, eles mesmos cruzados, das pessoas situadas, na representação, em posições diferentes de poder. (2003, p. 61-62).
Nesse sentido, é possível concluir que a representação não é apenas resultado de um olhar que, após cumprir sua missão, retira-se para o reino das coisas visíveis. O olhar, como uma relação social, sobrevive na representação, uma vez que ele não é apenas anterior à representação, como destaca Silva (op. cit., p. 62), mas é também seu contemporâneo. Assim, da mesma forma que há uma conexão necessária entre representação e poder, há uma conexão correspondente entre visão e poder. E são essas relações de poder que produzem sujeitos e constroem realidades.
BIBLIOGRAFIA
FRICKE, Ruth Marilda (mimeo). O olhar do pesquisador.
SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

Professora Luciane Sippert

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